"Na
formação e na vida, a televisão não substitui a leitura e o cinema
Às vezes,
dou por mim a falar nisso perante uma plateia que me olha como se estivesse a
dar notícias de um mundo meio real, meio imaginário. Não preciso de pensar
muito no que estou a dizer porque, por preguiça, utilizo quase sempre as mesmas
palavras, basta-me seguir o desejo de exotismo que encontro nos olhos que me
fixam. Então, parece-me, sou um pouco como aqueles escritores africanos ou
sul-americanos a quem se exige episódios coloridos, personagens singulares,
anedotas, contos com moral.
Ainda
assim, cada vez mais raramente, acontece estar alguém na sala que também
conheceu essas bibliotecas, que também lá esteve. Então, de repente, as
palavras voltam a ganhar significado, enchem-se. Ouço essa pessoa contar as
suas memórias e, durante aquele instante, somos irmãos no olhar. As descrições
têm préstimo, mas há uma presença muito mais funda, invisível, há a certeza de
que, afinal, aquele tempo e aquele lugar existiram mesmo. Até eu já começava a
duvidar.
As fitas
adesivas coladas nas lombadas eram reais.
Uma vez
por mês, ao fim da tarde, a carrinha Citroën chegava ao terreiro de Galveias,
calhava-nos as quartas-feiras. Ficava estacionada em frente da cooperativa. Em
Galveias, depois do 25 de Abril, o clube dos ricos passou a sede da
cooperativa. Quando eu chegava, vindo dos lados do São João, já havia outros
rapazes e raparigas à volta da carrinha.
Impressionava-me
a quantidade de livros. Precisava de me esticar para chegar às prateleiras mais
altas e, por isso, parecia-me que não tinham fim. O senhor Dinis conduzia a
carrinha, recebia os papéis preenchidos com os códigos dos livros que
requisitávamos, foi então que aprendi esse verbo, e era dentista. Eu conhecia-o
da sala de espera, aquele cheiro antissético, onde aguardava a minha mãe e as
minhas irmãs. Encontrei-o no ano passado na biblioteca de Abrantes, tirámos uma
fotografia juntos. Aproveito para lhe enviar um abraço. Espero que esteja a ler
estas palavras, com saúde.
Levávamos
sempre a quantidade máxima de livros. E, sim, é verdade aquilo que costumo
dizer: líamos muito depressa os que tínhamos e, depois, íamos trocando entre
nós até ao regresso da biblioteca no mês seguinte.
Esse era
também o tempo das sessões de cinema do Inatel no centro paroquial e na casa do
povo. Foi dessa forma que, em Galveias, desci a ladeira, passei pela travessa
da fonte e cheguei a casa com o rosto incendiado pelo Apocalipse Now. Foi
também assim que assisti ao Baile, de Ettore Scola, sentado em cadeiras de
tábua dura exatamente como aquelas em que assistia a bailes no salão da
sociedade filarmónica. Poderia agora dar muitos outros exemplos.
Conheço as
crianças de Galveias. Há dois anos, estive na escola onde também eu aprendi a
ler e vejo-as na rua quando lá vou. No entanto, se quero identificá-las, tenho
de perguntar-lhes quem são os seus pais. Nos sábados de manhã, ouve-se muito
menos crianças a brincar do que no meu tempo. No ano passado, na minha terra,
morreram mais de cinquenta pessoas e nasceram apenas duas.
As
crianças de Galveias são iguais às de antes. Sinto pena que tenham menos do que
eu tinha há quase trinta anos. Não se evoluiu. Na formação e na vida, a
televisão não substitui a leitura e o cinema.
Ao falar
de bibliotecas itinerantes aos meus filhos ou a essas crianças, sinto que sou
como o meu pai quando me contava histórias da sua infância. Eu sabia que se
tinham passado com ele mas, para mim, esse conhecimento era muito vago,
pareciam lendas. No entanto, esse tempo era tão concreto como este. Um dia,
este tempo, hoje de manhã, ontem, este preciso momento, será contado pelos meus
filhos e por essas crianças com o mesmo tom com que agora falo de bibliotecas
itinerantes. Naquele tempo, dirão. E aquele tempo será isto, tão concreto, tão
prosaico, tão isento de magia. Estes objetos sem graça serão esse incrível
futuro.
Eu, que
estou aqui neste instante, também estava lá, a cheirar aqueles livros, a subir
para a carrinha, a escutar a voz do doutor Dinis. Por isso, ainda que use as
mesmas palavras até à exaustão, hei de continuar a repetir esta história. Sempre.
É a minha história."
José Luís
Peixoto
Escritor
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