"A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras."
Rubem Alves
"De pequenino, torce-se o pepino e também se começa a gostar de livros.
Basta que os pais leiam aos bebés – até receitas –, que a leitura se faça em
família e que todos se deixem levar pelos livros.
Nem todas
as histórias têm de ter um final feliz para serem bonitas, nem sequer as
histórias que se contam às crianças, mas o final feliz para os pais que querem
que os filhos leiam é que eles comecem mesmo a gostar de livros. E isso, já que
não é uma capacidade que nasça com as crianças, é algo que se pode – e deve –
trabalhar, como afirmam Pamela Paul e Maria Russo, especialistas em literatura
infanto-juvenil do New York Times, num artigo cheio de dicas para as famílias.
Não é
apenas um capricho – está mais do que comprovado que os livros contribuem para
o desenvolvimento das crianças, e que são também aliados saudáveis para a vida
adulta. É por isso que se contar um conto deve mesmo acrescentar um ponto, e
mais um ponto, e mais um ponto, até que a leitura seja um elemento de
proximidade familiar, uma atividade enriquecedora para todos e, mais
importante, um momento feliz.
Os bebés dormem, comem, choram… e gostam de livros
Há aquela
imagem dos filmes em que uma mulher grávida embevecida põe os auscultadores em
cima da barriga para o filho começar logo a ouvir música. E faz sentido. Os
bebés reagem a estímulos sensoriais e esses estímulos contribuem para o
desenvolvimento das suas capacidades. O que significa que – embora o bebé possa
não mostrar grande entusiasmo quando está a acontecer – também faz sentido que
os pais leiam para os filhos desde as primeiras fraldas.
“Como não
se nasce leitor, é necessário guiar e acompanhar a criança, ao longo do
percurso, desde a descoberta do pré-leitor até à sedimentação da leitura. O
mergulho progressivo nos livros constituirá, decerto, um desafio apetecível
porque as crianças são, por natureza, curiosas e a curiosidade é motor das
aprendizagens ao longo da vida”, explicam os responsáveis pelo Plano Nacional
de Leitura ao Observador.
“Em nenhum
genoma humano está presente uma inclinação para os livros. O que se sabe é que
um leitor descobre-se quando acende o seu fogo interior, que a escritor Laura
Esquível comparou a uma caixa de fósforos imaginária."
Álvaro
Magalhães, autor de livros infantis
Nesta
primeira fase, as boas notícias é que os pais nem sequer têm de ler histórias
com sentido: podem ler o livro que já estavam a ler antes sobre a II Guerra
Mundial, um manual de instruções para alguma máquina que estava a dar trabalho
ou a receita de um bolo para o jantar. O importante é o som da voz dos pais, a
cadência típica da leitura e que as palavras sejam dirigidas para o bebé.
“Em nenhum
genoma humano está presente uma inclinação para os livros. O que se sabe é que
um leitor – tal como um escritor, ou um artista em geral – descobre-se quando
acende o seu fogo interior, que a escritor Laura Esquível comparou a uma caixa
de fósforos imaginária. Segundo ela, cada um de nós traz no interior essa caixa
de fósforos e, para acendê-los, é necessário um prato apetitoso, uma companhia
agradável, uma canção, uma carícia, uma palavra. Mas a chispa varia de pessoa
para pessoa, e cada um tem de descobrir os seus detonadores… a tempo, ou a
caixa de fósforos humedece e nunca poderá acender um único fósforo”, diz Álvaro
Magalhães, autor de dezenas de livros para crianças que já foi integrado na
lista de honra do prémio internacional Hans Christian Andersen.
Os outros
sentidos também podem ajudar nesta detonação. Mesmo que o bebé interrompa a
leitura para puxar as páginas ou comece a fazer sons em resposta aos sons que
está a ouvir, não faz mal. Este é o tipo de leitura em que os pais têm de estar
disponíveis para a interrupção. E até há livros cheios de texturas que podem
ajudar. Tal como ajuda ter tempo e paciência.
“O ouro da
literatura sempre foi o tempo, e é cada vez mais isso. Por isso é que a nossa
livraria é afastada de um local de passagem. Se é para virem até aqui, é mesmo
para escapar à rotina. E se há uma obrigação que os pais têm, desde que os
filhos são muito pequenos, é de cuidar da curiosidade dos filhos, e a leitura
faz parte disso. Só que a leitura não se faz apenas sentado com um livro na
mão. Tecnicamente, temos de transformar a leitura num jogo que se realiza em
diferentes dimensões, que é um universo comum em que a palavra abre espaço para
dança, música, movimento e tudo o que quisermos”, explica Mafalda Milhões,
responsável pela livraria Bichinho de Conto, em Óbidos, a primeira que abriu em
Portugal dedicada apenas ao livro infanto-juvenil.
A leitura é para ocupar a casa toda. E a família.
Para criar
um leitor é preciso ser um leitor. E isto não implica que o serão da família
tenha de incluir sempre um debate profundo sobre literatura russa ou sobre
poesia japonesa do século XIX. Acontece apenas que, ao partilhar leituras com
as crianças desde cedo, ao tornar-se uma atividade que se faz em conjunto – o
que acontece naturalmente quando as crianças ainda não sabem ler sozinhas – os
livros começam a ficar associados à voz dos pais e a um sentimento positivo de
proximidade.
“Infelizmente,
fala-se muito em leitura sem falar em comunicação. E nisso a família tem um
poder que não tem a escola, é a melhor incubadora para um leitor, para abrir
horizontes e fazer ligações”, diz Mafalda Milhões.
Há
pequenos truques para ir expandindo esta sensação e para a prolongar nas
diferentes fases de crescimento da criança: em vez de ler para a criança só à
noite, antes de deitar, é importante arranjar tempo para ler em outras alturas
do dia – e, milagre, isso vai fazer também com que a criança abrande;
transformar a leitura numa atividade interessante para as duas partes – nem tem
de ler sempre livros que deteste, nem a criança tem de gostar das caretas que
os pais fazem ao ler e pode interromper a qualquer momento; não fazer da
leitura uma obrigação ou um castigo, mas sim um momento de brincadeira e
alegria; ter livros espalhados pela casa, em vários sítios, que possam a
qualquer momento transformar-se num ponto de interesse e num fator de
distração; ir associando os livros e a leitura independente a um ato de
maturidade – também dando o exemplo – sem provocar uma quebra abrupta na
possibilidade de se continuar a fazer a leitura em conjunto.
“Há quem
leia porque aos dez anos teve uma pneumonia e para matar as horas de
aborrecimento não lhe ocorreu melhor coisa do que ler Stevenson. Até hoje. O
curioso é que todas as pessoas, sejam ou não leitoras, podem falar da sua
genealogia como leitores ou não-leitores, sempre com referência a uma
contingência ou um mero acaso. Ou seja, o ato de ler não nasceu quase nunca de
um ato puro de vontade ou da falta dessa vontade. Foi sempre a resposta a uma
situação. Convém então repeti-lo: chega-se à leitura graças a um golpe de dados,
quer dizer, a encontros e desencontros ocasionais”, explica Álvaro Magalhães.
E se os
pais não são leitores, porque perderam o interesse pelos livros ou porque nunca
encontraram esse golpe de dados, podem ser as crianças a servir de inspiração.
“Há algumas famílias que não sabem mesmo fazer isto, mas podem aproveitar para
seguir as crianças. Os pais têm de ter coragem para essa predisposição, para
aprender isso com os filhos”, diz Mafalda Milhões. Uma ideia que Álvaro
Magalhães completa: “No meu livro O Brincador há uma epígrafe que é todo um
programa de vida, dois versos de Carlos Queiroz: ‘Menino que brincas no jardim
/ Tu sim, podias ser um Mestre de mim.’ Eles afirmam a minha fé numa inteligência
infantil ainda não contaminada nem corrompida pelo mundo. Um dia perguntaram a
Stanislavsky como se fazia teatro para crianças e ele respondeu: ‘Como se faz
teatro para adultos, mas melhor’. É o que tento fazer, pois, tal como a
concebo, a literatura para os mais novos é uma arte maior. Para comunicar com
eles é preciso elevarmo-nos, e não o contrário – traduzirmo-nos,
imbecilizarmo-nos, infantilizarmo-nos, que é o que mais se faz, infelizmente.”
Os livros
também fazem coisas
Os livros
fazem coisas. E não são só aqueles livros que têm pássaros que saltam em
formato pop up, que emitem sons ou que servem, numa pilha, para levantar o
monitor de um computador. Os livros são histórias, e são imagens, e levantam
questões que se podem associar depois a outras actividades. “Se a criança
gostou muito de um livro sobre animais, se calhar era divertido a seguir irem
todos ao Jardim Zoológico com o livro”, exemplifica Mafalda Milhões.
Além
disso, os livros são também uma desculpa para ir à livraria do bairro, ou para
entrar numa biblioteca. Há cada vez mais atividades que se podem encontrar em
diferentes livrarias: desde oficinas de ilustração, ..., a atividades pelo bairro ou oficinas de
leitura entre avós e netos,...,
passando pela simples possibilidade de andar de baloiço ou ouvir uma história
.... É importante que a família fique atenta
à agenda das livrarias nas proximidades ou tire um tempo para ir a uma que
fique mais distante.
Na
Bichinho de Conto, por exemplo, Mafalda Milhões sente que muitas vezes o espaço
se transforma “no quintal da avó que muitas crianças já não têm isso”. “As
crianças vêm aqui para ler, mas também para andar de baloiço, para brincar com
as cabras, e isso tem tudo de literatura, não tem? Isto antes era só uma
sensação que eu tinha, mas agora já é conhecimento técnico ao fim de muitos
anos de trabalho: na leitura, o mais importante é a relação. Nós conhecemos os
nossos leitores desde pequenos e agora vejo-os na faculdade e continuamos a
fazer parte da vida uns dos outros.” É essa a relação que se pode criar com um
livreiro, que pode ser importante a ajudar na escolha dos livros, e que se pode
integrar nesta relação que se tem – ou não – com os livros.
“O PNL e
outros programas institucionais da leitura só se preocupam com números e
estatísticas. Do que precisamos é de leitores que contagiem leitores e sejam
capazes de transmitir a sua paixão. Pequenas comunidades, círculos de leitura,
clubes de leitores – que estão agora mais ativos com as redes sociais –,
pessoas que partilhem e propaguem a sua paixão e a sua felicidade. Só quem
verdadeiramente sente esse prazer e essa paixão a pode comunicar aos outros”,
diz Álvaro Magalhães.
Outra
coisa que os livros podem fazer é transformar-se numa prenda divertida para dar
aos amigos que fazem anos, uma prenda que se pode escolher em família e que
depois se pode aproveitar em conjunto com o aniversariante. E podem também ser
uma coleção: as crianças gostam naturalmente de colecionar, e vão adorar ter
uma prateleira ou uma estante só delas para irem arrumando os seus livros.
Quem tem
medo dos livros maus?
Quem tem
filhos pequenos e não tem uma música como “Despacito” em grande conta
artística, já teve de morder a língua algumas vezes por ver como a criança
dança ao ritmo do refrão e até já sabe alguns dos versos. Com os livros é um
bocado a mesma coisa: se eles gostam de histórias com carrinhas que falam ou
estão mais interessados em bandas-desenhadas da Marvel, não faz mal. Que atire
a primeira pedra quem não começou com a Turma da Mônica antes de chegar a um
Crime e Castigo.
Isto não
significa que os pais não devem ir abrindo caminho para leituras diferentes,
mostrando outras coisas, e que não devam – devem mesmo – gostar dos livros que
estão a ler com os filhos ou a comprar para os filhos, mas também não devem
ignorar ou diminuir os gostos da criança. E não devem ficar magoados se os filhos
não mostrarem grande interesse por aquele clássico da literatura infantil que
mudou a sua vida. Não é nada de pessoal.
“Não se
conhece até à data que um livro da Patrulha Pata tenha feito mal a alguma
criança. O que faz mal é se só houver isso. Claro que há narrativas mais
inteligentes, mas é tudo uma questão de gramática de afetos. Pode ser um livro
da Anita ou da Marvel, são livros que já formaram muitos leitores. O que é
mesmo um erro é uma criança ler só livros e depois não ler as placas da cidade,
não ler o que está no chão, não ler o que está no ar. A leitura tem é de estar
em todo o lado e existir para muscular aquilo que é a nossa identidade”,
acredita Mafalda Milhões.
Além
disso, cada leitor é um leitor – caso contrário, todos os adultos tinham de
adorar apenas o Ulisses ou Em Busca do Tempo Perdido. Com as crianças é igual.
Algumas vão gostar mais de manga, outras vão preferir novelas gráficas, e há
outras que só se vão interessar por não-ficção, ou seja, por aqueles livros
sobre curiosidades científicas. E o que é bom é que é possível encontrar livros
bons dentro de todos os géneros, e que normalmente essas fases evoluem para
outras. Além de haver cada vez mais opções para garantir que se expõe as
crianças à diversidade, e não apenas às histórias que confirmam aquilo que ela
já sabe.
De acordo
com o Plano Nacional de Leitura, esse é um dos trabalhos que cabe a um
organismo estatal na altura de sugerir livros às escolas: “A sugestão de
leituras do PNL assenta na ideia de que, sendo os gostos dos leitores, por
natureza, muito díspares, a variedade de oferta tem de ser garantida. A
diversidade permite orientar as escolhas e pautá-las por um grau progressivo de
exigência. O PNL está consciente de que o mais importante e desejável é Ler+ e
melhor, com competência e fluência, de todas as maneiras, em todos os suportes,
tirando o máximo partido dessas leituras.”
Seja como
for que se faz a lista, ou como se reúnem as sugestões de leitura, o importante
é começar a virar as páginas. O resto vai acontecendo e vai seguindo para
outros caminhos, como em qualquer boa história.
Retirado daqui.
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